quinta-feira, 24 de julho de 2008

Coisas de Cinema...

A malta estava sedenta de cultura, distracção, chama-lhe o que quiseres. E havia tão pouca, sobretudo no meio rural, em que se trabalhava de sol a sol, homens e mulheres, ajudados pelos filhos mal saíssem da escola. Arrastavam-se para casa, para o prato de aluminio estanhado com esparguete, batata, cebola e algum "conduto". Arrumar, limpar e lavar, meia de conversa, e cama, que amanhã há mais... O petróleo era caro, as velas também. Havia que aproveitar a luz do sol. A roupa a corar, na relva, presa com seixos do rio, para não voar. Os dentes a doer, a apodrecer na boca, que mirrava... O pé descalço nos torrões da lavra, a rodilha na cabeça para apoiar a enfusa, aquelas roupas negras ou cinzentas, só cortadas pelo grito de dor de uma faixa vermelha ocasional. As rugas fundas da pele tisnada, as ancas largas de fêmea parideira sem juventude, atolada em água até ao joelho, nos arrozais. E cantavam, Sued, e cantavam... Como tinham forças para cantar?
Não era gente de muitas missas, não. Lá havia beatas e carpideiras. Mas tudo se casava à sombra da Cruz, tudo era baptizado em nome dEle.
Mas havia cinema duas vezes por semana, puerra. Ali, ao pé da ponte, no velho Cine-Teatro com colunas de ferro e cadeiras de suma-pau. E frisas lá em cima, Sued, e camarotes...
Primeira plateia, segunda plateia, primeiro balcão, segundo balcão, geral...
O filme (a fita) partia-se aí umas quinhentas vezes por sessão. Pára e cola. Acende a luz da sala e conversa. Vai lá fora fumar um enrolado. Cheirava a mijo, a suor honesto, a vinho tinto e tremoços...
Dobragens não havia. Era tudo legendado. Nunca ouvi o John Wayne falar espanhol, árabe ou francês, nem os indios falar alemão ou italiano.
Mas as legendas tinham um pequeno problema: só podiam ser lidas por escassa minoria alfabetizada: as crianças que frequentavam a escola do Professor S.P.
E, assim, em volta de um alfabetizado sentava-se um grupo de analfabetos, para ele lhes ler as legendas em voz alta, para eles perceberem melhor o enredo do filme. Era um coro polfónico total, uma melopeia monótona e monocórdica, tipo teatro grego, que muito exasperava os betos e betas do balcão.
E dialogava-se: "Amo-te muito", lia o alfabetizado. E os analfabetos replicavam: "Mas quem, mas quem, ela ou ele? Quem diz isso? Ela ou ele?"
Era assim. Mas o cinema estava sempre cheio.
Que fome havia, Sued. Que sede havia, Sued.
Siga a música.

1 comentário:

LL disse...

Parabéns!!!!!!!!!!!!!!