terça-feira, 22 de julho de 2008

Coisas de Primos...

A MESA PÉ-DE-GALO
ou
PRIMOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS

No casarão ribatejano, pertença dos Avós, e habitado sazonalmente por uma chusma de descendentes e suas numerosas proles, havia uma mesa pé-de-galo.

Ignorada desde sempre, já tinha tampo novo, em madeira de qualidade inferior ao restante, e servia basicamente para os jogos de “king” e “canasta”, que os Tios gostavam de jogar. A Avó tinha sido mais adepta da bisca lambida, e zangava-se muito quando o parceiro não percebia os trejeitos faciais que revelavam as cartas que tinha.

Na sala grande, enquanto a miudagem retoiçava, os “crescidos” batiam as cartas todas as noites, chegando a formar três mesas.

O menino gordo, agora já crescido mas ainda gordo, casara e tinha filhos pequenos, mas isso não o impedia de alinhar em brincadeiras com os seus dezasseis primos e dois irmãos, todos mais novos do que ele.

Até que, um belo dia, a namorada de um dos primos apareceu com histórias dos poderes de uma mesa pé-de-galo: que se movia, que respondia a perguntas, que sabia o passado e previa o futuro.

Foi o que a primalhada quis ouvir. Sonegaram a mesa aos crescidos, que tiveram de arranjar outra para bater cartas, e formaram logo um pequeno grupo, curioso e corajoso, para explorar as potencialidades da mesa pé-de-galo.

Liderados inicialmente pela namorada do primo, em breve se estabelecia uma espécie de regulamento esotérico, que era forçoso acatar.

O grupo não poderia ser muito grande (chegavam a juntar-se oito primos à roda do tampo da mesa, com outros à espera de vez), mas convinha que fossem sempre mais do que dois; havia que respeitar a mesa, não dizer graçolas nem rir, com ou sem nervoso. Uma vez com os dedos sobre o tampo de madeira de pinho, sem carregar, não se podia cruzar as pernas (passava o fluido!). Crucifixos e medalhinhas também era conveniente tirar, porque aquilo não era lá muito católico, no sentido lato da palavra. O problema principal era que todos conseguissem sentar-se e pôr as mãos em tampo tão pequeno.

Não era preciso apagar luzes nem acender velinhas. As “sessões” faziam-se a qualquer hora do dia ou da noite, e em qualquer local da casa. Era frequente estarem os mais crescidos a bater cartas e a conversar, enquanto que, ao canto da sala, uma molhada de primos se curvava sobre a mesa, a fazer as suas perguntas, enquanto os mais pequenos gatinhavam por ali fora.

A namorada do primo ainda tentou convencer os primos que era necessário fazer-se uma invocação primeiro, chamar por alguém que já tivesse morrido, etc.. Mas em breve era forçada a desistir da ideia, pois a primalhada o que queria era ver a mesa “trabalhar”, e não tinha vocação para invocações, nem para chamar defuntos. Portanto, nunca chegou a haver ritual de qualquer espécie, e passou-se directamente à exploração sistemática das potencialidades da mesa pé-de-galo.

Todos se sentavam em volta da mesa, acotovelando-se, e colocavam as pontas dos dedos das mãos, ou de uma só mão, tocando levemente no tampo, como se estivessem a tocar piano mas sem carregar, tendo o cuidado de permitir que um dedo do próximo primo tocasse no seu, para fechar o circuito.

Toda a gente tinha sido repetidamente avisada de que, mal a mesa se começasse a mover, não se poderia romper o contacto com o tampo, e devia-se acompanhar esse eventual movimento, pois se se largasse a mesa, esta imobilizar-se-ia. Não poderia haver gracinhas nem risinhos nervosos, sob pena de a mesa parar de “trabalhar”.

As atenções da primalhada incidiam principalmente sobre os pés da mesa, para ver se algum dos três se levantava ligeiramente do soalho. Era frequente estar tudo com as mãos em cima da mesa e a cabeça debaixo dela, para mirar os pés.

Os crescidos paravam ocasionalmente para ver, sorriam com desdém, davam umas piadas, e seguiam. Aliás, às vezes queriam também participar, mas a coisa não resultava muito bem, especialmente com um dos Tios que, mal se chegava à mesa fazia, inexplicavelmente, parar tudo e ouvia logo um coro de “Ó tio, vá-se embora!”.

A mesa era tratada por “Ó Mesa, diz-me lá isto, diz-me lá aquilo...” e, por vezes, era interpelada com muita rudeza e grosseria, outras era apaziguada com elogios, do tipo “Ó Mesa, tu que és tão esperta, diz-me lá isto, diz-me lá aquilo...”

Estabeleceu-se um código para as respostas: uma pancada dos pés da mesa no chão para sim, duas para não. Os números eram pancadas, por exemplo, seis pancadas para o número seis, e, em caso de números grandes, a mesa era ajudada com perguntas tipo: “Bate sim se forem seiscentos, bate seis para seis mil”, etc., senão ficávamos ali todo o dia e toda a noite. As letras do alfabeto eram três pancadas para a terceira letra, C, seis para a sexta, F, etc.. Isto às vezes obrigava a que um dos primos fizesse de secretário da mesa, e anotasse as letras que ela ia indicando até formar palavras coerentes. Por vezes, não se esperava que a palavra fosse completada e perguntava-se à mesa se ela não quereria dizer isto ou aquilo, ao que ela poderia responder com simples sim ou não, encurtando os tempos de espera.

A mesa não tinha descanso aos fins-de-semana e durante as férias, altura em que a casa se enchia de primos, que, depois de darem os seus giros, tinham sempre tempo para dar uma voltinha na mesa.

Era conveniente procurar soalho sem tapete, para que as pancadas dos pés da mesa se ouvissem bem, e para que ela pudesse deslocar-se sem enrugar o tapete, coisa que a mesa conseguia com relativa facilidade, bamboleando-se ora num pé ora noutro, e abanando lascivamente o tampo.

Em breve se extraíram algumas conclusões empíricas e pragmáticas do regular funcionamento da mesa pé-de-galo:

1. Não valia a pena perguntar coisas que nenhum dos presentes soubesse, pois, nesse caso, as respostas eram geralmente disparatadas ou mentirosas. Mas desde o momento que algum dos presentes conhecesse a resposta, embora mais ninguém a soubesse, a mesa respondia correctamente.

2. Ficou amplamente provado que as previsões do futuro raramente ou nunca eram correctas. Ninguém acertou no totobola seguindo os palpites da mesa, embora se tenha tentado.

3. Quando se perguntava à mesa se fulano/a tinha um/a amante, ou se o/a namorado/a de sicrano andava com outra/o, a mesa respondia invariavelmente que sim, com pancada enfática e sonora. Inicialmente, chegou a haver
alguns problemas por causa disso, por parte dos primos mais crédulos.

4. Havia primos que tinham mais feeling para a mesa do que outros, conseguindo respostas mais rápidas e mais correctas, e um período de “aquecimento” mais curto.

5. Era frequente alguns dos primos ficarem com dores de cabeça depois de estarem sentados à mesa bastante tempo. Além disso, os mais impressionáveis levantavam-se ocasionalmente e iam espairecer lá fora ou dar umas trincas, até lhes ter passado a impressão.

6. A movimentação da mesa, sempre com os dedos dos primos sobre o tampo, mas nunca com o polegar debaixo do tampo, para o levantar, como, uma vez, alguém acusou sem qualquer fundamento, era considerável e arrancava exclamações de admiração a todos que viam. Até degraus desceu, a coitada, com os primos sempre à roda dela, e torcendo-se todos para não quebrar o contacto com o tampo, porque a mesa, sozinha, estava provado que não bulia. Se tal tivesse sucedido (a mesa mexer-se sem ninguém lhe tocar) talvez o menino gordo não estivesse agora a contar isto, e exercesse agora actividade bem mais rendosa do que a actual.

7. Era frequente e natural (já ninguém se espantava com isso) que a mesa ficasse equilibrada apenas sobre um dos três pés, com os outros dois levantados do soalho. Também conseguia andar pela sala, apoiando-se de pé em pé e com o terceiro pé a servir de apoio, obrigando os primos a grandes ginásticas, para a acompanharem sem retirar os dedos do tampo, pois este rodava alternadamente para a direita e para a esquerda.

Como podem ver, a abordagem à actuação da mesa pé-de-galo foi sistemática, fria e científica. Os resultados eram sempre mais importantes do que a causa. Esta cena durou muitos meses de várias férias e era retomada no ano seguinte, até os primos perderem interesse pela mesa, tendo-se então verificado que até um banco de cozinha servia, embora com quatro pés e, portanto, sem a instabilidade do pé-de-galo. Nunca ninguém pensou em invocar defuntos ou espíritos, nem contactar com nenhuma entidade sobrenatural que tivesse pachorra para vir de lá de cima (ou de lá de baixo) para responder a perguntas como “Onde está o meu canivete suíço?” “Qual é o número do telefone da minha miúda?”. Por acaso, o menino gordo, então já homem mas ainda gordo, veio a reencontrar um canivete suíço que perdera, graças às dicas fornecidas pela inefável mesa pé-de-galo. A entidade mais surpreendente, que falou por intermédio da mesa, foi um porteiro de cabaré, em Roma, que disse que estava a dormir enquanto nos respondia às perguntas, em frases que se revelava serem sempre em bom português, após descodificação das pancadas no chão. Mas o coitado em breve regressava ao Limbo, pois a primalhada não se interessou nada por ele.

A mesa, sujeita aquelas atrocidades todas, acabou por ficar empenada e com os pés meio soltos. Terminou a sua auspiciosa carreira de porta-voz do Além, quando um dos primos, insatisfeito com uma resposta obtida, a atirou contra a parede, inutilizando-a para todo o sempre.

A primalhada voltou-se então para representações teatrais, levadas à cena num anexo da casa grande, a que se chamava imaginativamente “casinha”. Mas isso já é outra história.

Contudo, o gordo ex-menino, já com filhos criados, ainda voltou ocasionalmente a servir-se dos préstimos de um tamborete (ou será escabelo?) com pé-de-galo que tinha lá em casa, tendo depois ascendido à utilização, mais rápida e eficaz, do velho pires voltado de fundo para cima, com uma setinha desenhada a esferográfica, e que deslizava sobre uma folha de papel (de preferência couché, para haver menos atrito) onde estava escrito o alfabeto todo, os números de 0 a 9 e as palavras “sim” e “não”, ou seja, a versão artezanal da tábua Ouija.

Passou-se até um caso curioso, com dois primos de sotaque francês e suas mulheres, mais um amigo de apelido estrangeiro, que vieram todos uma noite a casa do homem gordo ex-menino para uma sessão de pires, com chá e bolinhos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Blog deprimente?!!!
Só tu! Já dei umas boas gargalhadas à conta das tuas histórias! Keep up the good work!
Xuacks da Picarota