terça-feira, 22 de julho de 2008

O Menino era Gordo ou Uma História de Bruxas

O Menino era Gordo
ou
Uma História de Bruxas

Estava-se quase na década de cinquenta. O menino vivia em Lisboa mas passava longas férias em casa dos Avós, no Ribatejo, com numerosos primos e tios.

A Mãe do menino ainda pensava que gordura era formosura e, tanto ele como os irmãos, eram alimentados abundantemente, sendo a comida quase metida pela boca abaixo. Em resultado, e devido também a pouco exercício físico, o menino era gordo.

O menino não se ralava muito, pois lá ia conseguindo fazer como os outros meninos da sua idade: brincar às escondidas, aos cóbóis, aos casamentos e aos médicos, e até montava a cavalo e nadava no rio, com a malta do pé descalço. Nunca ninguém lhe falara em colesterol, obesidade, etc.. Às vezes tinha as perninhas assadas, coitado, e gastava as calças no entre-pernas, mas não passava disso. Para mais, gostava de comer, e naquela casa de férias ribatejanas comia-se bem: bela fataça, arroz de sarrabulho, cabidela, bacalhau no forno, torresmos, galinhas, coelhos e perus, grandes melões e melancias, laranjas e pêssegos carecas, até diospiros e romãs havia. E as sobremesas, meu Deus? Pão de ló, toucinho do céu, cruz de malta, mousse de chocolate com o açúcar deliberadamente mal batido, para haver aqueles torrõezinhos, o “pavé” russo, feito de palitos de “la reine” com natas, cacetes, broas... E o pão preto com água-mel, geleia e marmelada, e o mel das abelhas dos Avós, espremido ali dos favos, com restinhos de abelha e tudo?

Portanto, o menino era gordo. Já uma vez tinha sido levado ao médico, que receitara dieta rigorosa. Mas como se pode fazer dieta com aquela idade em que ainda não se namora, e com aquela comida a fumegar na mesa, todos os dias, três vezes ao dia, fora as ceias comidas na cozinha, quando se chegava mais tarde, e as fatias de pão com manteiga ou banha de porco (daquela amarela), levadas para o quarto, para comer enquanto se lia o Júlio Verne, o Emílio Salgari e o “Mundo de Aventuras”, e se deitava o olho às fotografias de actrizes mais descascadas do “Ciné-Monde”?

Havia na casa uma empregada antiga, já velha, viúva e de dentes estragados, como quase todas naquele tempo, que insistia em que o menino devia ir, com ela, à “bruxa” da Fajarda, para esta o tratar, pois toda a família dizia que o menino estava gordo demais, mas ninguém tinha coragem de lhe cortar a ração. A mulher garantia que a “bruxa” obtinha sempre bons resultados, já comprovados por muita gente dos arredores, que a consultara.

Mas o menino, cheio de tios com cursos universitários, médicos, engenheiros, arquitectos, etc., não estava assim tão convencido, e era comodista demais (e um pouco timorato) para se deslocar à Fajarda com a empregada.

Até que esta, um dia, trouxe um recado da bruxa da Fajarda: afinal não era preciso o menino lá ir pessoalmente; bastava que enviasse duas ou três peças de roupa, já usada e por lavar.

O menino gordo entregou à criada umas cuecas e um par de meias, devidamente sujas, para ela levar à inspecção da bruxa. A mulher assim fez, na sua próxima visita, e de lá voltou com instruções pormenorizadas e as peças de roupa do menino.

Durante a entrevista, a bruxa disse à velhota que sabia bem que o escrito que mandava ia para casa de gente com estudos, mas que, mesmo assim não receava mandar a receita, e garantia bons resultados.

O papel, escrito com caligrafia desajeitada mas sem grandes erros ortográficos, começava por dizer que o menino (que a bruxa nunca vira) era gordo demais porque comia demais e se mexia de menos. Depois, receitava uma dieta, listando os alimentos que deveriam ser proibidos, limitados ou permitidos. Por exemplo: carne e peixe, só cozidos ou grelhados; pão, só torrado e untado com um pouco de azeite; arroz, feijão, grão, massas, só três colheres de sopa por dia; couves, grelos, alface, etc., à vontade, e, sobretudo, nada de doces nem gorduras.

Ah, mas para que os resultados fossem a cem por cento, haveria que ir comprando à bruxa uns boiões com um creme feito por ela, de plantas e outros ingredientes naturais mas secretos, com o qual o menino se deveria untar completamente, todas as noites, antes de se deitar, tarefa considerável, devido à envergadura do menino.

Não eram necessárias rezas ou benzeduras, nem outros rituais. Os santos e os diabos não eram para ali chamados, o Livro de S. Cipriano não precisava de ser lido.

O menino pegou no papel escrito pela bruxa da Fajarda e foi logo mostrá-lo a um dos seus numerosos tios, que era médico de nomeada. O tio confirmou que, se a dieta fosse seguida, teria inevitavelmente como resultado uma desejável perda de peso, sem provocar carências vitamínicas nem perda de massa muscular. Acrescentou que a dieta estava perfeitamente adequada ao caso e à idade do menino, e que poderia ter sido receitada por qualquer nutricionista ou endocrinologista.

Não me lembro se o menino seguiu ou não a dieta, mas sei que nunca comprou qualquer boião de unguento à bruxa, nem pagou a consulta, se é que houve cobrança.

Tentemos desmistificar:

Parece evidente que não foi pela observação das peças de roupa (a não ser talvez pela medida do cós das cuecas) que a bruxa soube que o menino era gordo e que a sua família era culta. Para isso, deverá ter bastado um inteligente interrogatório à portadora, que a tudo iria respondendo, e, sem dar por isso, iria revelando idade, estatura, hábitos alimentares e lúdicos do menino, bem como pormenores sobre o seu ambiente familiar.

A correcção da dieta receitada terá podido provir de conhecimentos gerais e bom senso prático, bem como de alguma proximidade com o ramo de enfermagem, mas, sobretudo, de muita argúcia e experiência da vida. O unguento, possivelmente um adstringente moderado, poderia servir para consolidar, de forma inócua, o efeito de perda de peso e remover celulite, e seria, sobretudo, uma continuada fonte de receita para a sua autora e exclusiva produtora, que havia criado mercado para o produto, de cujo fabrico e comercialização detinha monopólio.

Tudo explicado, nada de bruxedo, nada de presciência; só bom senso, experiência, e saudáveis conhecimentos de psicologia e de marketing.

Mas, será que é indispensável desmistificar? Será que é obrigatório tentar explicar tudo, com lógica e realismo? Será que não é saudável acreditar em “bruxas”?

A “bruxa” portuguesa parece ter muito pouco a ver com o mito da bruxa de outros países, que nos é imposto em doses enormes, desde a infância. A “bruxa” portuguesa é mais “mulher de virtude”, curandeira e geradora de felicidade do que entidade perversa que envenena maçãs, adormece castelos inteiros e se desloca a cavalo de uma vassoura, para ir fazer umas modestas orgias e umas invocações ao Porco-Sujo, na clareira do bosque, uma vez por ano.

É um pouco como o “lobisomem” lusitano. Na região onde passei infância e juventude, o lobisomem era o sétimo filho de um sétimo filho (o que já é de realização difícil), o qual, nas noites de lua cheia, se rebolava na poeira de uma encruzilhada e se transformava, pobre coitado, em burro sarnento que ia escoicear as portas das casas, sem fazer mal a ninguém, até ao romper do dia. Toda a gente lá na vila sabia quem era o lobisomem local, e ninguém se incomodava com isso, ninguém o marginalizava, nem lhe chamava “burromem” em vez de “lobisomem”.

E quem se lembra ainda da “costureira”, aquela pobre moça condenada a estar sempre a coser à máquina, metida no forro das paredes? Sobretudo das paredes de madeira... Eu ouvi-a muitas vezes, e nem sequer era sempre à noite, e não me recordo de ter tido pesadelos por causa disso.

Faço daqui um convite e um desafio: Gostava que partilhassem comigo as vossas ideias sobre os mitos portugueses, juntamente com eventuais experiências que tenham tido ou julgado ter, comparando-os com os mitos de outros países, sobretudo os de climas frios e dias sem sol, esses sim, cheios de fantasmas, unicórnios, ninfas, espectros, elfos, duendes, grifos, monstros, vampiros, e outras criaturas sombrias do imaginário popular, que povoam alguns dos nossos pesadelos, mas que talvez não sejam assim tão terríveis, mas sim apenas dignos de dó, e em vias de extinção. É possível que, juntamente com a sua dissolução e destruição, levadas a cabo pela bruxa Tecnologia e pelo necromante Materialismo, que têm os seus mitos próprios, também percamos nós um pouco da nossa humanidade.

Aceitem, pois, o meu convite. Restituam um pouco de “vida” a moiras encantadas, gnomos, fadas, soldados-estragados, torres-da-má-hora, bruxas, lobisomens, marias-das-unhas, trasgos, costureiras emparedadas, papões, cabras-cabrês, e outras entidades míticas do nosso país, algumas tão desconhecidas e tão desprezadas. No Minho, como é? E nas Beiras? E no Alentejo? E no Algarve? E na Madeira e nos Açores? Gostava que me falassem disso, gostava de aprender convosco. E depois, quem tem medo de sentir um pouco de medo, de sentir aquele arrepiozinho gostoso, de ter a recordação do conforto dos braços da Mãe e do riso do Pai, quando a gente ia ter ao quarto deles, a chorar, porque estava um monstro debaixo da nossa cama?

Fico à espera de vos ouvir bater à minha porta, em noite fria e sem luar, com o vento a assobiar mansamente pelas frinchas, a cidade aquietada num torpor inusitado, num daqueles momentos em que, inexplicavelmente, se ouve o silêncio, e os amigos se entreolham, meio-contrafeitos.

Olha, não viste aquela sombra ali?... Seria...? Não, não pode ser, já não há disso há muitos anos, embora mas é ver a novela e saber se o Marcos engravidou a Clarissa, e se a Filosenda encontra o Gerson com a Débora em flagrante delícia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou-me a lembrara do "Homem do saco" que nos aterrorizava na pré-adolescência. Ou no cão que me lambia as mãos quando eu estava a dormir.

Anónimo disse...

Pena não escreveres mais no blog... perde-se uma infinidade de conhecimentos, que tu meu amigo, poderia nos revelar com esta sutileza...Bjs